"Os padres... Como os conheci? Na casa do vovô, creio; tenho a obscura lembrança de olhares fugidios, dentaduras estragadas, hábitos pesados, mãos suadas que tentavam me acariciar a nuca. Que nojo. Ociosos, pertencem às classes perigosas, como os ladrões e os vagabundos. O sujeito se faz padre ou frade só para viver no ócio, e o ócio é garantido pelo número deles. Se fossem, digamos, um em mil almas, os padres teriam tanto o que fazer que não poderiam ficar de papo para o ar comendo capões. E entre os padres mais indignos o governo escolhe os mais estúpidos, e os nomeia bispos.
Você começa a tê-los ao seu redor assim que nasce, quando o batizam; reencontra-os nma escola, se seus pais tiverem sido suficientemente carolas para confiá-lo a eles; depois, vêm a primeira comunhão, o catecismo, a crisma; lá está o padre no dia do seu casamento, a lhe dizer o que você deve fazer no quarto; e no dia seguinte, no confessionário, a lhe perguntar, para poder se excitar atrás da treliça, quantas vezes você fez aquilo. Falam-lhe do sexo com horror, mas todos os dias você os vê sair de um leito incestuoso sem sequer lavar as mãos, e vão comer e beber o seu Senhor, para depois cagá-lo e mijá-lo."
Umberto Eco, trecho de O cemitério de Praga. Tradução de Joana Angélica d'Ávila Melo. Record, 2011, p. 19-21.
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A leitura d'O cemitério é perturbadora porque o protagonista é neurótico e paranoico, cheia de opiniões extremas: odeia italianos, franceses, alemães, judeus... Você, pra simplificar, discorda e ri. Aí, de repente, se pega concordando com algumas das ideias do amalucado. E aí a tal leitura ainda mais doentia: você se flagra na demência.