Moebius morreu no sábado. Foi um monstro. E foi mais que um quadrinista. Tinha refletido bastante sobre seu trabalho havia uns dias. Um jornalista havia me procurado pra falar sobre Moebius, por conta dos novos álbuns, e eu acabei saindo do eixo dos quadrinhos e indo pro eixo da produção de imagens que marcaram uma época. Foi isso que acabei tratando no texto que, a pedido do Luiz Antonio Araújo, escrevi pra Zero Hora. Saiu hoje, no Segundo Caderno.
Dá pra clicar e ler a reprodução ampliada que eu peguei do iPad. Dá pra ler a íntegra, sem edição, abaixo.
No final, conto só aqui no blog umas coisas que não couberam no jornal.
Moebius é essencial
A notícia da morte de Moebius logo cedo, na manhã de sábado, estragou o dia de muitos leitores de histórias em quadrinhos. Justo. Afinal, foi com as HQs que o artista teve uma relação mais duradoura e prestigiada. Mas sua importância transcende obras como
Incal: Moebius foi antes de tudo um poderosíssimo criador de imagens e uma dos artistas mais influentes da segunda metade do século passado.
O que fez de Moebius Moebius foi uma imensa capacidade de se relacionar com o que estava acontecendo ao seu redor. A contracultura, os hippies e os eventos do mês de maio de 1968 francês ainda estavam frescos quando adotou o nome Moebius definitivamente. Lado a lado com o já conhecido faroeste Blueberry (no qual assinava seu nome de batismo, Jean Giraud, e seguiu publicando até os anos 2000), passou a produzir quadrinhos de uma forma que nunca tinham sido vista antes. Misturou ficção científica com expansão da consciência. Criou mundos imaginários que até podem estar em galáxias distantes, mas mais parecem tirados de um livro sobre o inconsciente junguiano. E deu certo: Moebius se deu muito bem com o espírito de seu tempo. Materializou em desenhos o que havia de mais contemporâneo na mente de seus leitores.
Nas páginas da revista Métal Hurlant, da qual foi cofundador, não só ele, mas também Philippe Druillet, Enki Bilal e outros autores exploravam terrenos parecidos. A publicação tornou-se um marco. Ali, Moebius influenciava boa parte da ficção científica e da fantasia que seriam criadas dali pra frente. E também cavava espaço para lançar seus livros mais importantes:
Incal,
O Homem É Bom? e
Garagem Hermética (este, veja só, influenciou até o nome de casa noturna porto-alegrense).
A força de suas imagens logo atraiu Hollywood. Moebius fez a concepção visual de dois filmes que ajudaram a definir a ficção científica nos anos 80:
Alien – O 8º Passageiro e
Tron. Colaborou em mais uma dezena de longas. Foi convidado para a equipe de
Blade Runner, mas recusou. Mesmo assim, a Los Angeles futurista dos replicantes foi construída a partir de seus quadrinhos. Moebius é tão onipresente no clássico de Ridley Scott quanto o tema sonoro de Vangelis.
A verdade é que a influência de Moebius na cultura mundial é imensa, mas ainda precisa ser avaliada com consistência. Olhando daqui, já parece claro que defini-lo apenas como um quadrinista que fez grandes álbuns não parece dar conta de sua produção: os indícios o colocam lado a lado com David Bowie, Kraftwerk, Rem Koolhaas e outros criadores. Eles, como Moebius, ajudaram a moldar o imaginário das décadas de 1970 a 1980.
Enfim, de volta às livrarias
O leitor brasileiro que se sentir motivado a ler a obra de Moebius a partir da notícia de sua morte pode encontrar uma parte de seus trabalhos nas livrarias. Não é tudo, mas já quebra o galho. É que, nos últimos anos, os quadrinhos europeus ganharam mais atenção do mercado editorial brasileiro. A presença de Moebius nas prateleiras é um reflexo desse fenômeno.
Talvez seu trabalho mais famoso, Incal acaba de ser publicado em um volume chamado
Incal Integral (Devir, 308 p.). O roteiro é do escritor e diretor de cinema Alejandro Jodorowsky. Na história, cheia de referências ao tarô, o detetive John Difool parte em busca de um artefato chamado o Incal. Outras séries ligadas a Incal também estão em catálogo, mas sem seu desenhista original.
Além de Incal, a editora Nemo está publicando obras de Moebius. Por enquanto, saíram dois álbuns:
Arzach (56 p.) e
Absoluten Calfeutrail & Outras Histórias (96 p.). São antologias de histórias curtas, menos conhecidas. Mas, ao contrário do Incal, tem roteiros de Moebius. A Nemo promete publicar outros volumes da coleção destinada ao autor este ano. Entre eles, duas obras essenciais:
O Homem É Bom? e
A Garagem Hermética.
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E notas extras, só no blog...
Uns dois anos atrás, um amigo me falou que havia um cartunista francês mundialmente famoso morando em Pirassununga. Passaram-se uns dias até eu descobrir que o sujeito era, na verdade, Alain Voss, brasileiro que foi um grande colaborador da Métal Hurlant. Fui com entrevista marcada, mas só lá soube que ele não queria dar entrevista alguma. Conversamos a tarde toda, sobre assuntos variados. E aí ele me deu a sua versão para o afastamento de Moebius da revista.
Teria sido culpa de Jodorowsky, que, pra ele, afastou de vez Moebius da política, levando-o a um mergulho no misticismo. Outros sócios teriam se irritado com a presença constante de Jodô.
Eu, que tinha conhecido Jodô uns anos antes, e visto algumas pessoas se converterem à sua psicomagia diante de mim, não por que duvidar.
Jodô é um ator, um poeta e um sedutor. Cá entre nós, não sei se ele acredita na psicomagia enquanto magia. Mas tenho certeza de que ele acredita que funcione -- e que o mise en scène é essencial.
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Lembrei muito de Moebius numa exposição que não o cita diretamente:
Postmodernism - Style and Subversion, 1970-1990, que o V&A apresentou até o começo deste ano. Moebius não estava, mas
Blade Runner estava, bem como vários de seus contemporâneos. O campo do pós-modernismo (o do design, da arquitetura) me parece um bom começo pra um estudo sobre a influência Moebius.
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Entre idas e vindas, entre noites viradas e colunas semanais, a Zero Hora foi minha casa por cinco anos. Já fazia uns cinco que não colaborava com nada. Foi bom voltar por um dia. Obrigado, Araújo, Tic, Claudia, Feix, Lari e todos os outros que eu nem sei que se envolveram.