(Desculpa, me atrasei. Eu tava fora. Foi mal. Desculpa mesmo.)
***
Lembrei da Fera (da Bela). Do Marquês de Sade. Do Edward Mãos de Tesoura. De gente diferente, perturbadora, que incomoda e que acabou encarcerada em um castelo ou em um calabouço qualquer.
Como o Michael Jackson, coitado.
Aí lembrei que a Fera, Sade e Edward não foram exilados porque eram diferentes. A humanidade isolou cada um deles simplesmente porque eles mostravam à luz do dia coisas como desejos sexuais ou amor sincero. Porque eles eram como nós - só um pouco mais sinceros ou transparentes.
Serendipitei no raciocínio e me dei conta de que, como os três, Michael Jackson também era como a gente. Só que meio sem limite. Ele extrapolava.
Saca só.
A gente vê filme de super-heróis e acha fofinho caderno da Hello Kitty. Ele mora num parque de diversão. (Um dia um laboratório de tendências aí me disse que éramos todos "kidults". Todos, inclusive Michael Jackson.)
A gente faz plástica. Ou, no mínimo, se mata pra ficar melhorzinho. Michael Jackson fazia cirurgias em busca de um rosto e de uma beleza que eram o que ele tinha.
Todo mundo tem algum problema com a família. A dele, devassada, parecia um pouco pior que a nossa. Mas vai saber. Melhor nem mexer aí.
No Twitter, esse monitor universal que uso para controlar a vida de um punhado de gente que acho interessante, li que muita gente chorou quando aquela menina bonita disse que papai foi o melhor pai imaginável desde que ela nasceu. Do destaque que a menina ganhou nas capas dos portais, depreendo (chuto) que o choro foi coletivo.
Depreendo de novo (chuto) que o choro não foi exatamente pelo destino incerto da orfãzinha. Algo me diz que a comoção veio porque aquela menina era normal (como a gente), porque ela falou de um cara normal (como o pai da gente). A gente esperava que a menina fosse fria ou dura ou louca ou tivesse cara de lambisgoia ou tivesse a pele coberta de escamas.
Mas, tal qual uma Susan Boyle ao reverso, não tinha nenhuma surpresa.
Ela era só uma menina que ama muito o pai morto.
Foi assim que a menina normal estragou tudo.
O circo estava montado. Tinha shows agendados e convites disputados no eBay. Vi na TV do restaurante chinfrim do almoço que tinha até um cenário para os visitantes fazerem retrato de recordação (vai ser moda daqui pra frente, certo).
Íamos nos livrar do nosso rei amaldiçoado. Enfim estaríamos livre para ouvir Thriller e Bad - elas estavam livres da maldição do ser estranho.
E aí veio a menina e - como a mocinha torta que ama os monstros dos filmes - mostrou pra todo mundo quem que quem. Redimiu o monstro e condenou o vilarejo.
Final clichê de filme ruim. Na maioria das vezes, a vida não consegue ser melhor que isso.
**
Lembrei do Ivan Lessa e do Gay Talese. Acusados de "mimimi".
***
(Acho que voltei. Acho.)
8 comentários:
delícia ler um texto teu.
adoro sempre.
beijócas
Acho que vc matou a charada.
um dos melhores comentários sobre o acontecimento
ih, discordo. Embora ache tua interpretação inteligente e até bonitinha.
O interessante, antes de tudo, é reparar como o espetáculo do enterro é mais do que aquilo que a gente observa. O espetáculo contamina não só quem assiste, mas também, quem dele faz parte. A própria identidade do mundo passa a ser espetáculo.
O choro da filha do Michael, por exemplo. Causou EXTREMA comoção, talvez, por ser um choro de gente humana, comum, talvez como eu e você, como você mesmo colocou. Ninguém esperava aquilo vindo de uma filha de uma figura intocável extremamente midiática e misteriosa como o Michael.
Por outro lado, o choro da garota também é suspeito: se eu fosse filho do Michael e ele tivesse sido um pai meia boca, certamente eu teria dito AS MESMAS palavras que a menina com A MESMA emoção. A direção do espetáculo - luzes, música, gente, mundo inteiro olhando - causaria uma sensação de amor ao pai e de perda que é real enquanto o espetáculo é assistido, mas que, sinceramente, não sei se corresponde a realidade da menina.
É o grande lance da simulação - simular não significa enganar, mentir, fingir. Hoje em dia é extremamente difícil saber o quanto "se É algo" e o quanto "se é teatralização de algo".
Vide amiguinhas da minha irmã na faixa dos 20 anos, que passaram a adolescencia construindo a identidade através de webcams, fotologs, blogs e comentários da galera. Quando eu pergunto algo pra elas - ou pra minha própria irmã - que exige um mínimo de identidade rígida, caráter ou o que quer que seja, elas entram em parafuso. Um espetáculo não é rigido, e uma identidade feita em cima de uma imagem pode ser qualquer coisa e mudar a qualquer instante.
Ou seja, ao assistir o enterro do Michael, consumimos ele mas tambem incorporamos ele ao teatro da nossa existência. Passamos a ser um pouco Michael. Passamos a fazer moonwalk sem querer andando na rua. Aceitamos um pouco melhor o fim dos anos 80. Aceitamos o fim de nossa infância e o fim de um grande astro - que morreu do nada, sem avisos - com um cerimônia lenta, caprichada, minuciosa, que tenta trazer midiaticamente o peso da morte de alguém tão distante - e ao mesmo tempo, tão perto.
Fantástica sua comparação com Sade e Edward e a bela Fera. Poderíamos citar mais um monte de “monstros” que são isolados do nosso convívio simplesmente por serem diferentes, por nos mostrarem nossas próprias facetas.
Fiquei imaginando Edward, ops, Michael isolado em seu castelo da terra do nunca, sem se encaixar neste mundo por não saber crescer.
O pequeno Príncipe e sua inocência, Peter Pan e suas brincadeiras, Sade e sua loucura, Edward e suas tesouras, Michael e sua pele... Parai qual desses personagens foi real mesmo?
Fantástica sua comparação com Sade e Edward e a bela Fera. Poderíamos citar mais um monte de “monstros” que são isolados do nosso convívio simplesmente por serem diferentes, por nos mostrarem nossas próprias facetas.
Fiquei imaginando Edward, ops, Michael isolado em seu castelo da terra do nunca, sem se encaixar neste mundo por não saber crescer.
O pequeno Príncipe e sua inocência, Peter Pan e suas brincadeiras, Sade e sua loucura, Edward e suas tesouras, Michael e sua pele... Parai qual desses personagens foi real mesmo?
boa sacada a do eduardo, tão bom quanto o comentário do gus m.
Adorei seu texto e concordo com você! A sociedade e todos nós que a formamos, punimos sem piedade tudo o que consideramos diferente do 'normal' estipulado pelo sistema social que conhecemos e que em nossa ingênua ignorância, acreditamos absoluto. Sem compaixão nem compreensão olhamos com desdém para tudo e todos que ousam ser eles mesmos, desafiando 'a ordem geral das coisas'.
Pobre deles e pobre de nós que perdemos oportunidades homéricas de crescer como seres humanos, aprendendo com o diferente, saindo do lugar comum e da sociedade doente e asfixiante em que vivemos.
Viva a diferença!!
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