segunda-feira, 23 de abril de 2012

O amor segundo Hitchcock

Hitchcock fala sobre amor.

A cena está aos 20 minutos de Rich and Strange, um dos primeiros filmes sonoros de Hitchcock. É de 1931. Está longe de ser um dos melhores. Mesmo a essas alturas, o diretor já tinha feito coisa melhor (The lodger, especialmente). Mas a história do casal Hill tem sua graça. Se quiser, tem todo aí, de graça:



Pois então: a cena começa no 20º minuto. Antes dela, o Sr. Hill pegou a herança do tio adiantada e saiu a viajar pelo mundo com sua mulher. É um novo rico, um emergente. Viaja deslumbrado e atrapalhado. É até caricatural.

Em Marselha, o sr. e a sra. Hill pegam um navio rumo ao Oriente. Enquanto o marido está mareado, a sra. Hill (Joan Barry) se encanta com o comandante, um certo sr. Gordon (Percy Marmont). Na cena em questão, os dois estão conversando.

Traduzi, ~adaptei~ e grifei o diálogo dos dois (uau, me deem uma medalha). É Hitchcock falando sobre amor. Tá aí abaixo.




O comandante Gordon começa:

- Você é uma delícia. Eu podia ficar ouvindo você a tarde inteira.

- Você está me ~zoando~...
- Não tou. Mesmo.
- Eu fiquei pensando que tava porque na real eu acho meio difícil falar com as pessoas.
- Jura?
- É, mas não com você. Eu acho mais fácil que falar com meu marido. Cê sabe...
- Olha... Quer dizer, desculpa.
- Bem...
- Não quis interromper. Continue...
- Eu queria dizer que tem uma coisa que eu não conseguia entender. Mas agora eu acho que sei por que isso rola.
- Por quê?
- Você é só um cara, não é o meu marido. Se você me achar mala, é só levantar e ir embora. Não faz diferença.
- Bem, mas faz. E muito.
- Você já amou, sr. Gordon?
- Não posso dizer que tenha amado.
- É uma pena, porque vai ser difícil pra você entender. Veja bem: eu amo Fred, e ele me ama. E naturalmente eu quero que ele pense bem de mim.
- Sei...
- Quando falo com ele, não quero dizer nada que soe idiota. Ele é muito inteligente.
- Mas eu não sou?
- Não. Você é interessante e divertido. E você gosta das coisas de que eu gosto, mas isso não é lá muito difícil, né?
- Não, não é.
- Então: não acho que seja inteligente.
- Acho que não sou mesmo. É muita sorte que não estejamos apaixonados.
- Né?
- O amor é um troço muito difícil, Sr. Gordon. Você ficaria surpreso.Faz com que tudo seja difícil e perigoso. Não acho que o amor faça as pessoas ficarem corajosas, como os livros dizem.
Ele as deixa tímidas. Deixa as pessoas mais felizes quando estão felizes e mais tristes quando estão tristes. Tudo é multiplicado por dois: a doença, a morte, o futuro... Tudo significa mais. Acho que não fui muito clara.
- Você foi, mas...
- O amor é uma coisa maravilhosa, Sr. Gordon.
- É...
- Esse tipo de amor que você descreve deve ser. Acho que terei que prová-lo.
- Claro, você foi feito pra isso. Mas escolha a mulher certa. Seria um crime desperdiçá-lo.
- Sra. Hill, você me daria uma resposta direta pra uma pergunta direta?
- Claro.
- Você tá me tirando?

***

Estou num projeto pessoal sem prazo de ver todos os filmes do Hitchcock na ordem ao mesmo tempo em que vou lendo o Hitchcock Truffaut, que é o livro monumental em que Truffaut entrevista Hitchcock. Fala filme a filme, discute detalhes - e dá uma guinada na forma como ele é visto pela crítica americana.

Ainda não sei o que vou fazer com isso. Nem se vou fazer algo com isso. Até cogito uma série de posts mais estruturados, mas sei lá. Por enquanto, estou tomando notas. Aos poucos, compartilho mais algumas coisas aqui.

terça-feira, 10 de abril de 2012

Seja lá o que você queira...

A primeira vez que eu ouvi falar do Derek Sivers foi quando assisti ao seu TED Talk, uns anos atrás.


Veja bem: eu já tinha visto um bom punhado de TED Talks, e acabei vendo outro punhado desde então. Mesmo assim, a palestra dele segue sendo a minha favorita. Ela dura apenas cinco minutos, é direta, fala de um tema muito contemporâneo e inverte a lógica natural do nosso pensamento. Acho genial. Mesmo.

Aí umas semanas atrás eu tava andando por aí e vi que o mesmo Derek Sivers tinha lançado um livro: Anything you want. O resumo dizia que o livro ia falar sobre a empresa que ele fundou, a CD Baby, uma distribuidora de CDs independentes, e falar um pouco de negócios. Podia ser uma cilada. Mas era o Derek Sivers, o mesmo cara do melhor TED Talk de todos os tempos, e tava barato. Eu tinha que dar uma chance.

Pois é.

Anything you want é bem legal.

Naquelas: se você acha que um bom livro é só uma novela latino-americana ou uma antologia de poemas russos, não vai ser a sua praia. É um livro de negócios. Sobre um cara que transformou um hobby em um negócio de uma forma bacana, e esse negócio se tornou uma imensa loja de CDs independentes.

O livro não tem clichês do mundo dos negócios. Não tem gráficos de pizza. Tem poucos números. Tem algumas fórmulas mágicas, mas elas são bem razoáveis e decentes. É curtinho.

Deu vontade de compartilhar, porque eu vejo muita gente boa aí tentando vender seu trabalho bacana de uma forma velha e quadrada. São escritores, quadrinistas, músicos, artistas em geral, e mais cozinheiros, doceiros... Muita gente muito criativa na hora de produzir suas obras, e muito, muito, muito careta na hora de pôr à venda. Acho que todo mundo conhece gente assim: na hora de criar, é um Pollock, um Joyce; quando vai ao mercado, veste as roupas de um vendedor de enciclopédia.

O livro do Sivers não dá um único caminho, mas mostra que você pode achar a sua forma de vender alguma coisa. Pode ser inspirador, pode servir.

Se ajudar alguém, tá ótimo pra mim.

domingo, 8 de abril de 2012

Três histórias de índio


(1) Xingu

O filme Xingu, de Cao Hamburguer, está nos cinemas. É sobre os irmãos Villas-Boas e a criação do Parque Nacional do Xingu. Bem bom pra uma cinebiografia. Gostoso de ver. Dentro do possível, os índios ficam em suas terras, mantém sua cultura, se protegem da nossa civilização. De novo: dentro do possível.



(2) Escalpo

A HQ Escalpo, de Jason Aaron e R.M. Guéra, é publicada da revista Vertigo. É um dos melhores quadrinhos que a DC Comics publica hoje em dia. Se passa dos Estados Unidos. Os índios têm uma reserva, mas vivem principalmente da exploração do cassino que instalaram nela e de produtos correlatos - sexo, drogas e crime organizado de maneira geral. Há agentes do FBI infiltrados. Gente corrupta. Até prova o contrário: ninguém presta.


(3) Habitante irreal

O romance Habitante irreal, de Paulo Scott, foi publicado no ano passado. Começa com um estudante de Direito que encontra uma índia na beira da estrada no interior do Rio Grande do Sul. O garoto se envolve com a índia, tenta ajudá-la, não quero ir além pra não estragar nada, mas o livro retrata aquela miséria em que vivem os índios brasileiros, ainda mais os urbanos, que vivem em reservas que pouco ou nada são mais que favelas com uma língua à parte.

(Falei um pouco mais de Habitante irreal outro dia.)

***

Pensando alto: a questão indígena

A gente chama de a "questão indígena". Tudo que é complexo demais a gente junta numa caixinha chamada "a questão". Tem questão racial. A das cotas. A dos homossexuais. A fundiária. A das drogas. É até bom pra diferenciar o que é fácil de fazer do que exige debate. No Brasil, não há uma "questão dos impostos", por exemplo. Não há nada a discutir, apenas a reduzir.

Mas dá pra reduzir com ficção? Dá pra fazer um romance sobre a reforma fiscal?

Habitante irreal mostra que Xingu mostra só uma parte do problema? Ou Xingu aponta um caminho para EscalpoXingu é um paraíso artificial que nos redime pelos índios de Escalpo e Habitante irreal? O final de Xingu alivia? E o final de Habitante irreal gera culpa? Escalpo, que ainda não chegou ao final, deve acabar como? Por que eu posso misturar índios americanos e brasileiros se as realidades são distintas? (As realidades são distintas?) Deveria haver um cassino no Xingu? E na aldeia de Maína, de Habitante irreal?

Pro que é questão de fato, dê-lhe debate. E ficção. Ou não.

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Freud e uma dificuldade da psicanálise


Sem controle sobre seu inconsciente, Dr. Freud virou dedoche

Uma dificuldade da psicanálise é um texto curto, de umas dez páginas. Nele, Freud enumera as três rasteiras que a ciência deu no que ele chama de “narcisismo geral”, ou “amor-próprio da humanidade”.

A primeira: Copérnico prova que a Terra não é o centro do universo.

A segunda: Darwin mostra que não somos o centro da criação. (Em sua explicação, Freud diz que a humanidade criou um abismo entre ela e os animais, o que faz especial sentido quando vemos hoje em dia como lidamos com a natureza.)

A terceira: a própria psicanálise, que, ao reconhecer o inconsciente, chega dizendo que o homem não é nem mesmo senhor de si mesmo. Como se já não bastasse ter perdido o posto de ser o centro do universo e da vida...

Em dado momento, Freud cria um depoimento imaginário da psicanálise para o Eu*. É de chorar de tanta belezura. A lucidez de Freud a respeito da psicanálise que ele mesmo desenvolveu nos anos anteriores é de uma lucidez avassaladora. Simplesmente não temos controle do inconsciente, mesmo quando achamos que temos.

Separei dois trechos:

“Você superestimou sua força, ao crer que podia fazer o que quisesse com seus instintos sexuais, sem considerar minimamente as intenções deles. Então eles se rebelaram e tomaram seus próprios obscuros caminhos, a fim de escapar à repressão, e criaram seus próprios direitos, de uma maneira que você não pode aprovar. Como realizaram isso e que vias percorreram você não pode saber; apenas chegou ao seu conhecimento o resultado desse trabalho, o sintoma que você percebe como sofrimento. Você não o reconhece como derivado de seus próprios instintos rejeitados, e não sabe que ele é a satisfação que os substitui.”

Mais tarde, a psicanálise encerra sua fala:

“Volte-se para si, para as profundezas, conheça antes a si mesmo; então compreenderá por que tem de ficar doente, e conseguirá talvez não ficar doente.”

***

* O “Eu” é o que era o “ego” na tradução consagrada. A tradução de Paulo César de Souza altera a nomenclatura.

***

Aos poucos, bem aos poucos, vou lendo as obras completas do Freud que a Companhia das Letras começou a editar no ano passado, com tradução de Paulo César de Souza. Ainda estou na metade do meu primeiro volume, e o 14º da coleção. O volume abre com um caso clínico memorável, O Homem dos Lobos. Aí vai pra Além do princípio do prazer, que não me animou tanto. E aí chegou a essa dificuldade da psicanálise.

Vou devagar com a leitura. Freud me faz ter sonhos incríveis, mas muito desgastantes. Só prossigo se posso me dar ao luxo de uma manhã mais perturbada. Sugestão, inconsciente, como saber?

(Aliás, posso apostar que hoje vai ser uma noite daquelas.)