quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Em Milão

A história que vou contar aconteceu com uma garota, mas me parece, desde a primeira vez em que ouvi, que ficaria melhor com um rapaz como protagonista. Um rapaz gay. Contudo, devo fidelidade a quem me contou, e é por isso que peço imaginação ao leitor para que altere o sexo durante a leitura. Obrigado e adeus,

Evandro, em seu último minuto de vida.

***

Tiro o dedo do nariz, coço a orelha com o minguinho e penso:

"Preciso vomitar aquele mondongo."

Depois de uma declaração dessas, não sou a leitoa nordestina pobre e remelenta que você imaginou. Sou modelo, e das boas. Meu agente diz que vou ser uma übermodel aos 18. Faltam menos de dois anos, portanto, para meu primeiro milhão. Vomito porque sou anoréxica. Já tentei tratar com Romodoxedrina, uma droga experimental em que fiquei viciada. Eu fico viciada em qualquer porra química do mundo. Como mondongo porque aqui em Milão é chique comer essas merdas brasileiras. Meu pai é filósofo e diz que que a humanidade está indo pra barbárie. Eu penso num homenzarrão que me puxa pelos cabelos. Me excito mais pensando no homenzarrão que trepando com franceses. Vomitei na boca de um francês outro dia e ele se apaixonou. A gente estava se beijando e aconteceu. Ele ficou todo preocupado e, quando percebi, estava dengoso. No outro dia, queria andar de mãozinha enquanto eu sonhava com um tabefe na cara -- um tabefe pesado, autoritário, repressor (não vingativo, porque vingança pressupõe afeto). De manhã, mandou flores e um anel Jacques Laver de dois milhões de franco. Cora, uma fracassada de vinte e dois anos que se vangloria de uma daquelas Louis Vuitton de bagaceira, diz que Vadin é herdeiro de um terço dos diamantes que ainda estão na África. Tudo que Cora conseguiu na vida (mas não nas passarelas) foi a bolsa e um amplo conhecimento a respeito de herdeiros franceses. Os herdeiros franceses ricos gostam muito de modelos, que consideram agradáveis intermediárias entre as putas, que são meramente profissionais, e as suas riquíssimas iguais, bem menos esforçadas em agradar seus paus amolecidos pela cocaína do que nós, as vadiazinhas da Semana de Moda de Paris.

Passei a desprezar o ziliardário e apaixonado Jacques, mas fiquei feliz com as flores. Há dois anos, em minha primeira visita a Paris, me contaram que as flores de lá eram cultivadas com corantes na água e agrotóxicos por tudo. O perfume que exala das pétalas quando queimadas chega a ser uma droga estonteante e baixa. Cora não entendeu por que fugi de um partido tão cobiçado, mas me consolou a seu modo:

-- Roger, se você quiser eu apresento, tem metade das minas de diamantes e uma rede de telecomunicações na América Latina. Mas já aviso que o pau é ainda menor.

Olho para Carlo ao meu lado e cogito vomitar o mondongo na cara dele. Pra ver a reação. Melhor não. Vai que ele se apaixona. Carlo não tem nenhuma mina de diamantes. Só uma rede de restaurantes. Rede regional que só tem aqui, em Portugal e na Espanha. Em dois anos, vou ser mais rica que ele. Só com meu corpo. Coço meu pé direito com o dedão do pé esquerdo. Seria uma boa se Carlo se tornasse traficante. Do jeito que cheira, sairia mais barato. E ele ainda poderia usar seus insuspeitos caminhões frigoríficos azuis para transportar quilos e quilos de pó todos os dias. Mas Carlo é babaca, sem ambição. Está feliz com o que tem. Feliz não! Enjoativamente satisfeito com seu primeiro milhão, em parte porque acha que está me comendo por causa da grana e da Ferrari, quando na real ele só era o último coitado com um papelote no bar. Felicidade é só o nome que se dá pra fuga dos problemas.

Como lá no Rio, em que Juan quis porque quis conhecer uma favela. O Juan era gostoso, rico, artista de cinema e muito generoso na repartição de pó, então eu naturalmente cedia mais pra ele. Armei que a faxineira desdentada da minha agente nos recebesse em seu casebre à beira de um valão cloacal. Perguntei quanto custaria um churrasco bem alegre e farto.

-- Pro pessoal lá em casa a gente gastou cinqüenta e sete. Saiu até pagode. Mas como vai a senhora e o seu Juan acho melhor gastar um tantinho mais.

-- Quanto?

-- Uns oitenta.

Dei pra pobre coitada quatrocentos reais. O Juan me deixara mil, do qual descontei minha porcentagem de sessenta porcento. Na época, eu era uma modelinho em ascenção. Ainda assim, foi suficiente pra aquela gente beber e cantar das onze da manhã até a uma da madrugada. Meu pai não acreditava em felicidade, mas minha mãe sim. E dizia que dinheiro não a compra, prova disso era que festa em casa de pobre sempre era uma alegria só.

Lembrei muito da minha mãe naquela noite, e percebi que ela estava errada: 1. o dinheiro, o dinheiro do Juan, por sinal, comprara aquela felicidade, sim; 2. Eles não estavam felizes, só anestesiados dos problemas.

Essa gente pobre, crente, encardida tinha que perceber de uma vez por todas que sua infelicidade e sua miséria é um desígnio -- se há um deus, ele nos quer infelizes, ou não teria nos dotado de lágrimas.

Enfim eu corro até o banheiro. No caminho, tropeço. Caio de cara no chão. Não sei se o sangue que sai do meu nariz é do tombo ou do pó. Sinto um vácuo abrir no meu peito, o vômito arranha minha garganta, resseca meus lábios e jorra sobre a roupa de Carlo. Então estico o braço, alcanço a garrafa de uísque, viro de guti-guti e então, só então, me sinto eu mesma.

terça-feira, 12 de agosto de 2008

Terça, duas da manhã

Antes de jogar, o boneco olhou pra mim e disse:

-- Normal não é legal.


Suicidal model

sábado, 9 de agosto de 2008

Resumo

Se o amigo não tem disposição pra ler o imenso post abaixo, que ao menos fique com a idéia central, assim resumida: vá ver Encarnação do demônio, o novo filme do Zé do Caixão.

Porque é espetacular.

É dublado, viu?

Aí eu tava com preguiça de ir até um cinema decente e teimei em ver Encarnação do demônio no Cinemark aqui perto de casa mesmo.

Claro que é estupidez. Cinemark é SEMPRE uma porcaria. E eu sabia disso.

Outro dia, fui, no intervalo do almoço, na primeira sessão do dia -- mas não tinha dado tempo de limparem a sala no intervalo de doze horas que separava a minha sessão da última do dia anterior. O chão estava coberto de pipoca. A sala cheirava a manteiga rançosa, e bem mais do que o habitual das salas da rede.

Mas aí eu cheguei na bilheteria:

-- Uma pra Encarnação do Demônio.

-- Inteira?

-- Inteira.

-- Pras treze e dez?

-- É.

-- É dublado, viu?

*


Aí eu dei graças a deus que estava no Cinemark. Se fosse em outro lugar, poderia estar numa sessão da Sociedade Italiana, por exemplo, antecipando a cópia que será exibida em Veneza.

Mas no Cinemark a gente sempre pode contar com o despreparo da equipe.

*


Por exemplo: vimos Quando os fracos não tem vez naquela mesma sala. Em fevereiro ou março, acho.

Com certeza é a mesma: uma bem pequena que eles guardam pra filmes a que o público deles não assiste

Na época, reclamei pro gerente que havia retângulos de luz que incidiam sobre a tela e atrapalhavam a imagem.

E o gerente ficou perplexo, achou um absurdo e disse que ia consertar imediatamente.

Hoje, passados tantos meses, os retângulos ainda estavam lá.

*


Aliás, a gente sempre pode contar com o público do Cinemark nos bons filmes. A catrefa de mascadores de pipoca simplesmente não entra nessas sessões.

Só tinha eu e mais outro sujeito na sala. E uma hora umas senhoras que cuidam da limpeza apareceram para ver (e comentar) uma cena especialmente herege.

É uma pena. Pena mesmo. Tomara que a situação tenha sido melhor em outras salas.

*


Porque o filme do Mojica é demais, claro.

De muitas formas, fala sobre tudo isso que está aí em cima. Depois de 40 anos na prisão, o Zé do Caixão sai para um mundo em que ele não se encaixa. Ele é monstruoso, pervertido, doentio, mas o resto é bem pior. A banda podre da polícia, por exemplo. Ou as milícias da favela. Ou os ruminantes de pipoca.

*


Aproveitando: tem que ler o Prontuário 666, do Samuel Casal. Tem quê.

O Samuel fez uma puuuuuta HQ que serve de prelúdio ao filme. Que conversa com o longa do Mojica e com excelente documentário O prisioneiro da grade de ferro, que é do Paulo Sacramento, não por acaso o produtor de Encarnação do demônio.

*


A trilha do filme está no MySpace.

*


Pra acabar: nunca fui o cara mais próximo do Dennison Ramalho, que é o co-roteirista, diretor-assistente e, pelo que ouvi falar, faz-tudo do filme.

A Cléo de Paris eu não vejo há zilhões de anos. E é por causa dessas dissonâncias que São Paulo faz com a gente e a gente teima em aceitar.

Mas estou muito, muito feliz pelos dois.

Download da palestra do David Lynch

Psst
Perguntas sobre como foi a palestra do Lynch chegam tanto por aqui quanto pelo Flickr (pus umas fotos lá).

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

David Lynch em São Paulo

Primeiro foi a bagunça da fila, que começou a se formar cedo. Tinha gente tentando furar, acabou virando barraco, um horror.

Estava claro: os agora lendários 166 lugares do Teatro Eva Herz, na Livraria Cultura do Conjunto Nacional, não teriam como abrigar os centenas de seguidores de David Lynch.

Teve bate-boca, teve funcionário da livraria jogando a responsabilidade da organização para o público, teve gente que chegou cedo e ficou de fora em detrimento dos furões. Enfim, ficou um climão pesado.

Fora que tinha que chegar cedo, ficar na fila, uma chatice.

E teve o lado legal: o Lynch reuniu uma fauna de amigos que ia de artista chapecoenses a editores do Batman.

Mas, deixando tudo isso de lado, de repente:

David Lynch

David Lynch estava lá. Com seu topete Eraserhead. Falando sobre meditação. Dizendo que idéias são como peixes. E que, às vezes, assim como você se apaixona por um peixe, você acaba se apegando a uma idéia -- e é essa idéia, que não é necessariamente a maior ou a melhor, que vira a obra.

(Pra mim, que já tinha lido Em águas profundas, tirando o momento tiete, foi isso que mais valeu.)

Coisas assim. Por pouco mais de meia hora.

Ou coisas como a pergunta "Meditação transcendental pode ajudar as pessoas a entenderem seus filmes?".

Pra qual a resposta foi, citando uma das supostas vantagens da tal técnica:

-- Compreensão infinita.

E a galera riu.

David Lynch

Além do Lynch em si, estava, meio que de surpresa, o Donovan, guru de meditação dos Beatles.

Donovan

O Donovan. Quem diria. E ele ainda cantou uma canção.

quinta-feira, 7 de agosto de 2008

Napkin art

Se o café de Montevidéu é bom, me digam onde. As minhas tentativas foram frustrantes. Tanto que tive que apelar pro McCafé -- sem gosto, mas ao menos não tinham um final com gosto de água suja.

É uma pena, porque, no inverno, Montevidéu implora que você tome litros de café todos os dias.

Foi numa dessas que me saí com esta:

Eu odeio ser obrigado a sorrir

E esta:

Cuidado, señor. Está quente!

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

Eraserhead

O Guilherme Kroll tinha um problema: os colaboradores eventuais do site Homem Nerd, no qual é um dos coordenadores, não tinham assistido a Eraserhead, mas queriam fazer um especial bem completo sobre David Lynch.

Aí ele recorreu a mim.

E eu escrevi um texto.

terça-feira, 5 de agosto de 2008

E o Duchamp no MAM?

Sim, tem a roda de bicicleta.

Roda


E o urinol.

R. Mutt, 1917


Mas tem um lado do Duchamp que é o do zoador, o do criador, do provocador.

Cinema


Esse é o Duchamp que me interessa. Eu fui atrás dele, e ele estava lá. Você pode até me acusar de ter sido um encontro marcado, que eu já sabia o que estava procurando -- mas aí vai ter que me explicar porque, se eu sabia o que ia achar, saí de lá surpreso.

E a exposição da Bossa Nova na Oca?

Antes de qualquer coisa: fotogênica.

Óculos

Outra coisa: é um grande cenário do Gringo Cardia. Mas o cenário não tá lá longe, no palco. Você caminha por ele. E uma coisa que eu reparei, e muito, foram nas imperfeições propositais que formam os efeitos visuais. Tipo uns fios mais grossos que dão a sensação de movimento:

Fios
Ah, claro: a Copacabana indoor, no subsolo, sem sol nem mar, é de uma ironia fina deliciosa.

Andando em Copacabana

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

Chupa, Picasso

Vaso de flores 1Vaso de flores 2
Um desenho bem simples pra pôr numas molduras velhas, foi o que me pediram. Pra decorar casa mesmo.

Me sentindo um arremedo de renascentista, me pus ao trabalho e me saí com esses dois vasos de flores, naturezas mortas de nanquim escolar e caneta Magic-Color (essas pequenas maravilhas) sobre papel Canson.

O pagamento é em algo que vale mais do que dinheiro: um suprimento perpétuo de queijo de Minas e goiabada. Pra fazer Romeu e Julieta.

Pode falar mal, pode não gostar, pode dizer que é comercial: o queijo é meu, a goiabada é minha.

Cinema rasteiro

Batman - É tão bacana que me pus a achar defeitos. Listei 52.

Arquivo X - É tipo Indiana Jones: só de tocar a musiquinha já vale o ingresso. Mas o filme é, ainda por cima, bom pra chuchu.

domingo, 3 de agosto de 2008

Mojica e o medo

ÉPOCA - De onde surgiu a vontade de fazer filmes para causar medo nas pessoas?

Marins - Um dia o projecionista do cinema que meu pai gerenciava caiu na besteira de liberar minha entrada durante uma sessão para alertar mulheres sobre doenças venéreas. A primeira coisa que vi na telona foi uma vagina com gonorréia. Aquilo me assustou muito! Comecei a chorar. Até hoje tento reproduzir aquele terror que senti.

(Entrevista completa, por Rodrigo Turrer, aqui. O filme do Zé do Caixão estréia logo mais. E pra mim cria mais expectativa do que um Batman do Nolan ou qualquer dessas coisas assim.)

Conversas com o Dr. Freud

Dr. Freud
E aí a gente estava no CaixaFórum, tinha visto uma mostra matadora do Mucha e queria trazer o catálogo. Fomos na lojinha e lá estava ele, figura recorrente de todas essas lojinhas de museus por que passei nos últimos anos: o dedoche do Freud.

Comprei, né?

Já fazia tempo que eu andava arrependido de tê-lo deixado pra trás tantas vezes. Sentia que ele tinha algo além do aparente. Que era um dedoche especial.

E era.

As pessoas falam com o dedoche do Freud. Abrem seus segredos, buscam ajuda, o enfrentam, como se estivessem em terapia -- e não importa que elas estejam em uma sala de espera ou um Starbucks ou até mesmo no meio do escritório. Elas simplesmente me ignoram (e isso não me parece fácil), olham para meu dedo e começam a falar.

-- Olha, eu sei que você só pensa em sexo e acha que tá tudo relacionado a sexo, mas o meu problema não é esse.

-- Eu me sinto sozinho, por isso, não sei o que fazer.

-- Eu não acredito em terapia, em ficar falando com um sujeito que não me responde nada, prefiro uma conversa, viu?


Não é completamente mágico?

sábado, 2 de agosto de 2008

Em águas profundas


A semana que vem vai ser de Em águas profundas, o puta livro bacana de meditação do David Lynch.

É que Lynch já está pelo Brasil. Na quinta, faz palestra, dá autógrafos e faz alguma função em São Paulo.

Comprei o meu semana passada, no lançamento do livro da Jeanne. Não fui só eu. Suspeito até que tenha sido o segundo livro mais vendido da noite.

É curto, é gostoso de ler, é inspirador - dá vontade até de tentar meditar. Pra mim, funciona como um manual de auto-ajuda intelectualóide que dá uma vontade imensa de fazer esforço para criar. Mas funciona.

Outro dia mesmo eu postei um vídeo do Lynch falando sobre o livro.

Outro trecho que bateu: "A raiva, a depressão e o sofrimento são muito bonitos nos enredos, mas venenosos para o cineasta e o artista. São como torniquetes de criatividade". Pra mim, faz todo o sentido: nunca consegui criar nada quando estou mal. Não cola nem aquele papo de trabalhar pra esquecer.

Pros outros, sei lá se funciona. De repente, não.

Mas pra mim é curioso demais que alguém não tenha interesse em saber como a mente do Lynch funciona.

O Calombo Amigo

Figura 1


Depois de um tempo, a gente aprende a conviver com um colchão inflável e suas idiossincrasias.

Aqui em casa temos um colchão já faz tempo. Roxo. Comprei logo que me mudei, para poder receber eventuais visitas. No fim, eu mesmo já dormi nele diversas vezes.

Bastante usado, o colchão acabou se desgastando. Não estourou, mas abriu por dentro, o que gerou um calombo (ver Figura 1).

O calombo tem uma formação curiosa. Se coberto por um edredon, dá a impressão de que tem uma pessoa miudinha dormindo ali embaixo. Tanto que quem dorme ao seu lado mais cedo ou mais tarde o abraça.

Acho que é por isso que o nosso amigo Guiti acabou batizando o calombo. Agora, chamamos de Calombo Amigo.

As últimas semanas foram movimentadas. O calombo abrigou o Delfin, presença constante nesta casa, o Guiti e minha própria mãe. Agora, faz companhia para a jovem Milena, prima da Jeanne. É um bom rapaz, o Calombo Amigo. No começo, se estranha, mas todo mundo acaba gostando dele.

Nos próximos meses, devemos ter algumas mudanças por aqui. É algo que pensamos faz tempo. Nessas mudanças, o Calombo Amigo deve bailar. Suspeito que o movimento de visitas deve cair.