Ontem, vi a última apresentação da ópera O Barbeiro de Sevilha em São Paulo. E, por acaso, uma das últimas do ano: depois de passar por várias cidades em um semestre, estão programados apenas mais um fim de semana em Ribeirão Preto e uns dias no Rio. E aí acabou.
O Barbeiro de Sevilha, no caso, é a primeira montagem da Cia. Brasileira de Ópera, montada pelo maestro John Neschling depois que ele foi demitido da Osesp. Muita coisa foi escrita tanto sobre a demissão da orquestra quanto sobre a criação da companhia. Não preciso repetir tudo aqui. Mas, de tudo que vi, uma ideia ficou, e nela eu queria pedir licença para insistir: Neschling declarou que não tinha interesse em assumir uma outra orquestra porque o Brasil não precisaria de uma outra Osesp; preferia fazer algo novo, que não existia por estas bandas.
Passam-se uns meses, mas não muitos, ainda mais no tempo que se pensa que é necessário para montar uma companhia, e não só um espetáculo - a mim, parece que é um esforço que exige um bom tempo. Aí a montagem estreia. Primeiro em Belo Horizonte, depois itinerando pelo Brasil, até chegar na apresentação de ontem.
Comprei ingresso com medo.
Fui com medo.
E não me torrem a paciência com meus medos, não temo sem motivos: já vi algumas montagens razoáveis no Brasil, mas também já vi algumas coisas medonhas, de sentar nas primeiras filas e mesmo assim a voz da cantora não chegar até mim. Mesmo um diletante como eu, um flâneur desse mundo, percebe que tem algo muito errado nessas horas.
Só que o Barbeiro me encantou. Saí com a sensação de que tinha algo de muito especial nascendo ali. E essa é a ideia que eu queria que ficasse pra vocês de tudo que falo neste post.
Como sou absolutamente leigo em música erudita (aliás, em quase tudo), não vou tomar o tempo de ninguém com uma crítica impressionista sobre a música que não vai levar a lugar nenhum.
Mas é evidente que Neschling e sua companhia fizeram um esforço monumental para fazer uma ópera explicitamente acessível e generosa. Partiram de uma peça bem popular. Até o Pica-Pau já cantou esse Rossini, pô:
Aí vem a opção de usar um desenho animado como cenário, o que torna a montagem fácil de transportar e, portanto, itinerar - porque não há uma Sevilha inteira de compensado, apenas uma tela e um projetor. E a escolha de usar esse desenho animado não só como um recurso de cenário, mas também pra dar o tom da linguagem.
O elenco interage com a animação o tempo todo. Usa roupas coloridas, perucas, tem uma atuação que lembra as criaturas de Hanna-Barbera - o Barbeiro definitivamente está mais para a dupla que para Disney. Ficou um barato: o clima sisudo se quebra em minutos e as pessoas riem o tempo todo, aplaudem, se divertem mesmo.
Ok, admito que em alguns momentos - mas só alguns - fiquei com a impressão de que o humor fica escrachado demais e para de funcionar. Aposto que é meu lado ranzinza se manifestando, porque o público não parou de rir. Eu nunca gostei de Chaves, né?
Não vi as récitas infantis, apresentadas à tarde, encurtadas para 50 minutos de duração (versus as quase três horas do espetáculo regular), mas aposto que foram fabulosas e que as crianças amaram.
O fato é que a Cia. Brasileira de Ópera chegou num Barbeiro fácil de se gostar. Facílimo. Tão fácil que imaginei apresentações relâmpago de árias em parques, em prédios, em shoppings, em centros comunitários, em qualquer lugar. Popular mesmo, sem ser precário nem primário nem vulgar, mas que é generoso com seu público, que é convidativo. E que é fresco e novidadeiro num mundo que parece empoeirado pra quem está longe.
Se a ideia de Neschling é mesmo ter uma companhia de ópera permanente no Brasil, me parece um começo cheio de boas escolhas.
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Pra mim, é fato que a Cia. encerra esta primeira temporada com bastantes méritos. Mas também com uma lista de tarefas para cumprir para as próximas temporadas. E, note, são tarefas que ela não pode cumprir sozinha.
1. Não sei como foi nas outras cidades, mas, em São Paulo, havia dois elencos se revezando nas apresentações, sem contar o elenco das récitas infantis. Num o Bartolo é o Pepes do Valle; noutro, o Sávio Sperandio, dentre outras diferenças. Não sei qual o melhor elenco, nem se há um melhor. Não sei se vi o espetáculo com o elenco certo. Mas tenho uma amiga que sabe. O problema é que eu não soube que havia dois elencos até chegar no Teatro Alfa e olhar o programa. Não soube disso no site da companhia, nem no site extra-oficial, nem no site de vendas de ingresso. Se isso saiu em algum jornal, passou batido por mim. Não pude perguntar pra minha amiga. Em tempo: a imprensa bem que poderia se empenhar em indicar qual o melhor elenco, se houver um.
2. Mesmo em cima do laço, comprei um lugar ótimo na quarta fileira, bem central. Mas o programa não trazia o libreto nem mesmo um resuminho da ópera. Isso porque havia a legendagem - e, como ocorre no teatro às vezes, a legenda fica lá no alto. Só que isso eu só soube disso ao entrar no teatro. O meu até então ótimo lugar virou uma fábrica de torcicolo. A sorte é que a sessão não estava lotada, e eu consegui me acomodar em um lugar algumas fileiras mais para trás. Divulgar esse tipo de informação é um serviço utilíssimo. Se a companhia não faz isso para não se melindrar com os teatros, os jornais, as revistas e os sites poderiam fazer.
3. Não vi em nenhum lugar a informação de que havia um intervalo na apresentação de 150 minutos. Havia. Também é um serviço importante.
E digo tudo isso porque tenho certeza de que há muita gente como eu, que está começando a ir a óperas agora, e porque nitidamente a Cia. tem olhos voltados para atrair esse público e um outro, que nunca na vida foi a uma ópera. Metade do público de ontem tinha menos de 40 anos - ou seja, é bem mais jovem do que qualquer ópera a que tenha ido na vida, mesmo as do Metropolitan transmitidas nos cinemas.
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Claro, tudo isso passa por uma questão central: se a gente acha que é realmente importante o Brasil ter uma companhia permanente de ópera e uma cultura de ópera. Porque de nada adianta fazer tudo isso se não for relevante.
Pra falar a verdade, do alto da minha capacidade de pensar bobagens sobre assuntos que desconheço por completo, eu tinha sérias dúvidas a respeito dessa necessidade. Ópera é um troço caríssimo de produzir, de manter, de preparar elenco, e que é fácil de deixar tosco. Pra mim, em um curto prazo, não valeria a pena fazer tudo isso só pra atrair quem vai pros Estados Unidos e pra Europa pra ver montagens de fôlego e ficar falando mal dos similares nacionais. Talvez fosse melhor usar essa grana em um plano de fomento pra jovens e velhos talentos, bolsas, iniciativas menores e pontuais, preparando o terreno.
Posso estar enganado. Provavelmente é cedo pra dizer o que vai acontecer. Mas o fato é que o Barbeiro me pegou. Neschling parece ter encontrado um caminho que põe essa visão de investir num milagre a longo prazo em xeque. Me deixou curioso pra ver no que vai dar. E eu gosto disso. Que venha a temporada 2011.
(Fotos deste post extraídas do Flickr de Joshua Held, responsável pela concepção gráfica e pela animação do Barbeiro.)
3 comentários:
Nasi, acho louvável a iniciativa da Cia. de (também faz parte de sua busca por projeção pós-OSESP). Espero que seja um primeiro passo para o surgimento de uma cultura de ópera no país. O Chatêlet, em Paris, também utiliza projetores, com ótimos resultados. É importante que o Barbeiro tenha sido apresentado em italiano, e sem cortes, e sem descaracterizar a obra, que utilizava os recursos cômicos à mão no período. Havia visto a informação sobre os dois elencos na revista Concerto, mas de fato não havia uma valoração sobre o desempenho de cada um. O meu receio é que a iniciativa se detenha na comédia. Uma ópera como o Barbeiro, por seu caráter cômico; mas será que uma obra mais séria teria o mesmo desempenho? - é notório que as peças com maior público no país hoje são também humorísticas. Óperas como Othello, Lucia di Lammemoor, Il Trovatore, A Flauta Mágica, Salome, Wozzeck, O Anel, seriam tão bem-sucedidas? Talvez seja esse o maior desafio de Neschling & Cia. nos próximos anos: encenar as grandes obras sem descaracterizá-las, e ao mesmo tempo obter público para que a empreitada se mantenha.
Nasi, acho louvável a iniciativa da Cia. de (também faz parte de sua busca por projeção pós-OSESP). Espero que seja um primeiro passo para o surgimento de uma cultura de ópera no país. O Chatêlet, em Paris, também utiliza projetores, com ótimos resultados. É importante que o Barbeiro tenha sido apresentado em italiano, e sem cortes, e sem descaracterizar a obra, que utilizava os recursos cômicos à mão no período. Havia visto a informação sobre os dois elencos na revista Concerto, mas de fato não havia uma valoração sobre o desempenho de cada um. O meu receio é que a iniciativa se detenha na comédia. Uma ópera como o Barbeiro, por seu caráter cômico; mas será que uma obra mais séria teria o mesmo desempenho? - é notório que as peças com maior público no país hoje são também humorísticas. Óperas como Othello, Lucia di Lammemoor, Il Trovatore, A Flauta Mágica, Salome, Wozzeck, O Anel, seriam tão bem-sucedidas? Talvez seja esse o maior desafio de Neschling & Cia. nos próximos anos: encenar as grandes obras sem descaracterizá-las, e ao mesmo tempo obter público para que a empreitada se mantenha.
Mateus,
Acho que a questão passa por isso mesmo: formar e fomentar uma cultura de ópera. Se é rumo ao ciclo do Anel ou a Othelo, sei lá. Talvez seja uma companhia bem popular por uns anos, para aumentar o público, para gerar um interesse quando mudar de ares. Olhando daqui do fim de 2010, me parece que é algo que vamos todos descobrir juntos pra onde esse trem vai. E isso não deixa de ser animador.
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