Várias capas de Festa no Covil. Roubei do site do Villalobos |
"Se jogam uma bomba atômica em você, os sabres não servem pra nada."
Gosto dessa frase que o Juan Pablo Villalobos escreve mais pro fim de seu Festa no Covil. De certa forma, esse romance curtinho que a Companhia das Letras lançou há umas semanas pode ser definido por ela. Porque o livro fala sobre (e é narrado por) esse menino, Tochtli, que vive isolado do mundo num cartel de narcotraficantes. Tão isolado que consegue contar quantas pessoas conhece (14). Filho de Yolcault, El Rey, não sabe exatamente por que vive isolado. Nem mesmo tem discernimento para entender o que se passa ali. É protegido. E se protege. Tipo o Mito da Caverna.
Tochtli é espertinho. Tem os sabres. Mas enfrenta uma bomba atômica, que é uma montanha de informações que ele desconhece. Ele nem sabe que vive no alto de um império de podridão etc. e tudo o mais que o narcotráfico é.
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Os últimos dias foram corridos. Queria ter lido Festa no Covil em uma sentada, mas não deu. E olha que são menos de 100 páginas com uma fonte bastante razoável.
(Já volto pro Tochtli.)
Durante a semana, também não vi o Kony, aquele que todo mundo viu e que se tornou o vídeo que se viralizou mais rápido na história da internet. Só que o vídeo tem meia hora e, desculpa, é uma colagem de imagens com muitos clichês, não consegui me empolgar na primeira tentativa.
Assim:
Vi ontem.
Minha primeira reação foi "O Banksy fez isso". E não só pelo chapa Shepard Fairey, que aparece lá pelas tantas. Mas é que o autor parece alguém que entendeu o famoso "tudo isso que está aí". Banksystyle.
Aí fiquei pensando o que fez, até agora, 82 milhões de pessoas verem esse vídeo quase por inteiro (porque o Google só conta se você se aproxima do fim).
Ou melhor: o que motivou as primeiras mil ou dez mil pessoas a verem esse vídeo quase por inteiro. Porque, a partir de algum momento, a força do hype explica o fenômeno. Mas o que leva alguém que não é mais amigo do autor a dizer: "Ei, você TEM QUE ver esse vídeo" quando esse vídeo tem meia hora, é repetitivo, é em inglês, é uma colagem caseira de imagens e que, convenhamos, não é como a Susan Boyle, que você vê rapidinho, vê de novo, chama um amigo pra ver com você e, de repente, você mesmo, sozinho, percebe que foi responsável por uns dez views.
Raiva do ditador? Vontade de participar de um evento global? Desejo de ser um super-herói por um dia? Tentativa de mandar no governo? Culpa por não saber que existia um bandidão na África? Ou, somando tudo, uma forma de tentar lidar com a culpa que se sente pelo "tudo isso que está aí"?
(Na boa: adoro a ideia de prender Kony. Contudo, é a África. Um continente inteiro que é uma tragédia. Sudão. Nigéria. Líbia. Um continente inteiro que foi colonizado. E aí um rapaz americano. Enfim.)
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Aí voltamos ao Tochtli. Que vive ao lado de um bandidão do narcotráfico mexicano. E, pelo que sabemos, o narcotráfico mexicano não é lá muito diferente de um Kony no quesito "atrocidades".
Tochtli não enxerga que seu mundo é estranho (pra nós) porque ele já nasceu imerso em todas as mentiras. Vive num mundo de fantasias, com samurais, hipopótamos anões, chapéus e palavras difíceis. Não pode sair (e aqui o poder é bem amplo). Não chega a ser muito diferente de quem tem um colar de diamantes e não sabe como a pedraria foi extraída de uma mina África.
Quer dizer: Tochtli não enxerga, mas há um subtexto que percorre o livro que indica que ele não quer ou não pode (porque não está pronto, porque tem limitações) enxergar.
Festa no Covil virou um sucesso editorial. Ganhou rapidamente edições em diversos países, e mais outros vão publicá-lo, o que não é exatamente comum para o primeiro romance de um autor latino-americano. Não é na mesma toada de Kony. Mas Festa no Covil também é um baita sucesso global.
Fiquei com a sensação de que Festa no Covil e Kony 2012 contam histórias muito parecidas sobre a tentativa de enxergar a origem do mal que está ao nosso redor.
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Chegamos a um ponto em que tudo pode gerar culpa. Porque conseguimos enxergar a origem do mal.
A moça vai ficar noiva. Dez sudaneses morreram extraindo o diamante do anel da mina.
O cara resolve deixar de andar de carro pra pegar metrô. O sistema é hidroenergético, mas a eletricidade alagou hectares e hectares de mata pra ser gerada.
O rapaz compra um celular. Um chinês se matou.
O sujeito põe molho de tomate no cachorro-quente. Um agricultor do interior de São Paulo perdeu os braços porque precisou aplicar o agrotóxico sem proteção adequada.
Kony 2012 e Festa no Covil falam sobre essa consciência extrema que surgiu com a proliferação de abaixo-assinados, campanhas, notícias... A informação circula mais. Estamos todos conectados. Se tudo faz mal ao mundo, todos fazemos mal. Temos que lidar com o fato de que somos todos parte do bando de Yolcault, do exército de Kony ou do board da fábrica de celulares. É um inferno. Isso significa que não basta combater milicianos africanos com vídeos no Youtube. Para fugir do inferno, também temos que aceitar a nossa própria nocividade.
2 comentários:
Estava adorando todo o texto, aí chegou na última frase e estragou tudo.
Admito que também não curto, mas ainda não achei uma alternativa melhor.
Só nã entendo a dificuldade de se identificar pra dizer isso.
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