segunda-feira, 28 de maio de 2012

Tippoo Sultan's Incredible White-Man-Eating Tiger Toy-Machine!!!

O nome do livro é esse mesmo, inclusive com as exclamações: Tippoo Sultan's Incredible White-Man-Eating Tiger Toy-Machine!!! Daljit Nagra é uma revelação recente da poesia inglesa. Esse é seu segundo livro, e o primeiro já bastou para colocá-lo no primeiro time da poesia britânica contemporânea. E é justo: que belo poeta que é.

Encontrei-o por acaso, nem tenho por que me gabar. Estava numa livraria em Londres e fui até a seção de poesia. Porque é aquilo: é muito difícil achar poesia britânica contemporânea no Brasil. Nem Ann Carol Duffy foi traduzida, o que me parece bastante bizarro. Então tem que aproveitar as viagens pra futricar um pouco. E foi numa dessas que vi a capa do livro de Nagra:



Lembro que pensei assim: "Com uma capa dessas, o cara tem que ser ou muito ruim ou muito ousado". E aí o fato de estar uma livraria fez diferença. Um dos livreiros tinha escrito um daqueles bilhetinhos em que contam por que gostam do livro, e o rapaz parecia bem entusiasmado.

Levei, trouxe, comecei a ler e, bem, cá estou contaminado pelo mesmo entusiasmo.

Transcrevi dois poemas do livro, com a esperança de contaminar vocês também, e quiçá um editor brasileiro a fim de traduzi-lo:




The Monsoon Song of Raja Narcissus

all the girls say they love me
all their mums say i'm lovely
ever since i lived in the clouds

ever since you left
i've been raining on the road
where you frist said you loved me




Tippoo Sultan's Incredible White-Man-Eating Tiger Toy-Machine!!!

To flesh a career

in poems you rifle

through your stash

of coolly imperial

diction. Dying

to blood that hoard

swotted since foreign

kid of the class

who chewed the fat

of the raw meat minty

tongue that English

is

nowadays your wrought

state. You're awfully

scary once in your

stripes! You claw

at the mirror – overcome

by the camps of history!

Thus

when that top-hat sahib

screams, O God

your eyes are ablaze

observing themselves

in the cull you're

no longer mankind

once you're the Sher

of Punjaaab on the wallahs of the

rrrrraaaaaaaaaaaajjj!!!

segunda-feira, 23 de abril de 2012

O amor segundo Hitchcock

Hitchcock fala sobre amor.

A cena está aos 20 minutos de Rich and Strange, um dos primeiros filmes sonoros de Hitchcock. É de 1931. Está longe de ser um dos melhores. Mesmo a essas alturas, o diretor já tinha feito coisa melhor (The lodger, especialmente). Mas a história do casal Hill tem sua graça. Se quiser, tem todo aí, de graça:



Pois então: a cena começa no 20º minuto. Antes dela, o Sr. Hill pegou a herança do tio adiantada e saiu a viajar pelo mundo com sua mulher. É um novo rico, um emergente. Viaja deslumbrado e atrapalhado. É até caricatural.

Em Marselha, o sr. e a sra. Hill pegam um navio rumo ao Oriente. Enquanto o marido está mareado, a sra. Hill (Joan Barry) se encanta com o comandante, um certo sr. Gordon (Percy Marmont). Na cena em questão, os dois estão conversando.

Traduzi, ~adaptei~ e grifei o diálogo dos dois (uau, me deem uma medalha). É Hitchcock falando sobre amor. Tá aí abaixo.




O comandante Gordon começa:

- Você é uma delícia. Eu podia ficar ouvindo você a tarde inteira.

- Você está me ~zoando~...
- Não tou. Mesmo.
- Eu fiquei pensando que tava porque na real eu acho meio difícil falar com as pessoas.
- Jura?
- É, mas não com você. Eu acho mais fácil que falar com meu marido. Cê sabe...
- Olha... Quer dizer, desculpa.
- Bem...
- Não quis interromper. Continue...
- Eu queria dizer que tem uma coisa que eu não conseguia entender. Mas agora eu acho que sei por que isso rola.
- Por quê?
- Você é só um cara, não é o meu marido. Se você me achar mala, é só levantar e ir embora. Não faz diferença.
- Bem, mas faz. E muito.
- Você já amou, sr. Gordon?
- Não posso dizer que tenha amado.
- É uma pena, porque vai ser difícil pra você entender. Veja bem: eu amo Fred, e ele me ama. E naturalmente eu quero que ele pense bem de mim.
- Sei...
- Quando falo com ele, não quero dizer nada que soe idiota. Ele é muito inteligente.
- Mas eu não sou?
- Não. Você é interessante e divertido. E você gosta das coisas de que eu gosto, mas isso não é lá muito difícil, né?
- Não, não é.
- Então: não acho que seja inteligente.
- Acho que não sou mesmo. É muita sorte que não estejamos apaixonados.
- Né?
- O amor é um troço muito difícil, Sr. Gordon. Você ficaria surpreso.Faz com que tudo seja difícil e perigoso. Não acho que o amor faça as pessoas ficarem corajosas, como os livros dizem.
Ele as deixa tímidas. Deixa as pessoas mais felizes quando estão felizes e mais tristes quando estão tristes. Tudo é multiplicado por dois: a doença, a morte, o futuro... Tudo significa mais. Acho que não fui muito clara.
- Você foi, mas...
- O amor é uma coisa maravilhosa, Sr. Gordon.
- É...
- Esse tipo de amor que você descreve deve ser. Acho que terei que prová-lo.
- Claro, você foi feito pra isso. Mas escolha a mulher certa. Seria um crime desperdiçá-lo.
- Sra. Hill, você me daria uma resposta direta pra uma pergunta direta?
- Claro.
- Você tá me tirando?

***

Estou num projeto pessoal sem prazo de ver todos os filmes do Hitchcock na ordem ao mesmo tempo em que vou lendo o Hitchcock Truffaut, que é o livro monumental em que Truffaut entrevista Hitchcock. Fala filme a filme, discute detalhes - e dá uma guinada na forma como ele é visto pela crítica americana.

Ainda não sei o que vou fazer com isso. Nem se vou fazer algo com isso. Até cogito uma série de posts mais estruturados, mas sei lá. Por enquanto, estou tomando notas. Aos poucos, compartilho mais algumas coisas aqui.

terça-feira, 10 de abril de 2012

Seja lá o que você queira...

A primeira vez que eu ouvi falar do Derek Sivers foi quando assisti ao seu TED Talk, uns anos atrás.


Veja bem: eu já tinha visto um bom punhado de TED Talks, e acabei vendo outro punhado desde então. Mesmo assim, a palestra dele segue sendo a minha favorita. Ela dura apenas cinco minutos, é direta, fala de um tema muito contemporâneo e inverte a lógica natural do nosso pensamento. Acho genial. Mesmo.

Aí umas semanas atrás eu tava andando por aí e vi que o mesmo Derek Sivers tinha lançado um livro: Anything you want. O resumo dizia que o livro ia falar sobre a empresa que ele fundou, a CD Baby, uma distribuidora de CDs independentes, e falar um pouco de negócios. Podia ser uma cilada. Mas era o Derek Sivers, o mesmo cara do melhor TED Talk de todos os tempos, e tava barato. Eu tinha que dar uma chance.

Pois é.

Anything you want é bem legal.

Naquelas: se você acha que um bom livro é só uma novela latino-americana ou uma antologia de poemas russos, não vai ser a sua praia. É um livro de negócios. Sobre um cara que transformou um hobby em um negócio de uma forma bacana, e esse negócio se tornou uma imensa loja de CDs independentes.

O livro não tem clichês do mundo dos negócios. Não tem gráficos de pizza. Tem poucos números. Tem algumas fórmulas mágicas, mas elas são bem razoáveis e decentes. É curtinho.

Deu vontade de compartilhar, porque eu vejo muita gente boa aí tentando vender seu trabalho bacana de uma forma velha e quadrada. São escritores, quadrinistas, músicos, artistas em geral, e mais cozinheiros, doceiros... Muita gente muito criativa na hora de produzir suas obras, e muito, muito, muito careta na hora de pôr à venda. Acho que todo mundo conhece gente assim: na hora de criar, é um Pollock, um Joyce; quando vai ao mercado, veste as roupas de um vendedor de enciclopédia.

O livro do Sivers não dá um único caminho, mas mostra que você pode achar a sua forma de vender alguma coisa. Pode ser inspirador, pode servir.

Se ajudar alguém, tá ótimo pra mim.

domingo, 8 de abril de 2012

Três histórias de índio


(1) Xingu

O filme Xingu, de Cao Hamburguer, está nos cinemas. É sobre os irmãos Villas-Boas e a criação do Parque Nacional do Xingu. Bem bom pra uma cinebiografia. Gostoso de ver. Dentro do possível, os índios ficam em suas terras, mantém sua cultura, se protegem da nossa civilização. De novo: dentro do possível.



(2) Escalpo

A HQ Escalpo, de Jason Aaron e R.M. Guéra, é publicada da revista Vertigo. É um dos melhores quadrinhos que a DC Comics publica hoje em dia. Se passa dos Estados Unidos. Os índios têm uma reserva, mas vivem principalmente da exploração do cassino que instalaram nela e de produtos correlatos - sexo, drogas e crime organizado de maneira geral. Há agentes do FBI infiltrados. Gente corrupta. Até prova o contrário: ninguém presta.


(3) Habitante irreal

O romance Habitante irreal, de Paulo Scott, foi publicado no ano passado. Começa com um estudante de Direito que encontra uma índia na beira da estrada no interior do Rio Grande do Sul. O garoto se envolve com a índia, tenta ajudá-la, não quero ir além pra não estragar nada, mas o livro retrata aquela miséria em que vivem os índios brasileiros, ainda mais os urbanos, que vivem em reservas que pouco ou nada são mais que favelas com uma língua à parte.

(Falei um pouco mais de Habitante irreal outro dia.)

***

Pensando alto: a questão indígena

A gente chama de a "questão indígena". Tudo que é complexo demais a gente junta numa caixinha chamada "a questão". Tem questão racial. A das cotas. A dos homossexuais. A fundiária. A das drogas. É até bom pra diferenciar o que é fácil de fazer do que exige debate. No Brasil, não há uma "questão dos impostos", por exemplo. Não há nada a discutir, apenas a reduzir.

Mas dá pra reduzir com ficção? Dá pra fazer um romance sobre a reforma fiscal?

Habitante irreal mostra que Xingu mostra só uma parte do problema? Ou Xingu aponta um caminho para EscalpoXingu é um paraíso artificial que nos redime pelos índios de Escalpo e Habitante irreal? O final de Xingu alivia? E o final de Habitante irreal gera culpa? Escalpo, que ainda não chegou ao final, deve acabar como? Por que eu posso misturar índios americanos e brasileiros se as realidades são distintas? (As realidades são distintas?) Deveria haver um cassino no Xingu? E na aldeia de Maína, de Habitante irreal?

Pro que é questão de fato, dê-lhe debate. E ficção. Ou não.

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Freud e uma dificuldade da psicanálise


Sem controle sobre seu inconsciente, Dr. Freud virou dedoche

Uma dificuldade da psicanálise é um texto curto, de umas dez páginas. Nele, Freud enumera as três rasteiras que a ciência deu no que ele chama de “narcisismo geral”, ou “amor-próprio da humanidade”.

A primeira: Copérnico prova que a Terra não é o centro do universo.

A segunda: Darwin mostra que não somos o centro da criação. (Em sua explicação, Freud diz que a humanidade criou um abismo entre ela e os animais, o que faz especial sentido quando vemos hoje em dia como lidamos com a natureza.)

A terceira: a própria psicanálise, que, ao reconhecer o inconsciente, chega dizendo que o homem não é nem mesmo senhor de si mesmo. Como se já não bastasse ter perdido o posto de ser o centro do universo e da vida...

Em dado momento, Freud cria um depoimento imaginário da psicanálise para o Eu*. É de chorar de tanta belezura. A lucidez de Freud a respeito da psicanálise que ele mesmo desenvolveu nos anos anteriores é de uma lucidez avassaladora. Simplesmente não temos controle do inconsciente, mesmo quando achamos que temos.

Separei dois trechos:

“Você superestimou sua força, ao crer que podia fazer o que quisesse com seus instintos sexuais, sem considerar minimamente as intenções deles. Então eles se rebelaram e tomaram seus próprios obscuros caminhos, a fim de escapar à repressão, e criaram seus próprios direitos, de uma maneira que você não pode aprovar. Como realizaram isso e que vias percorreram você não pode saber; apenas chegou ao seu conhecimento o resultado desse trabalho, o sintoma que você percebe como sofrimento. Você não o reconhece como derivado de seus próprios instintos rejeitados, e não sabe que ele é a satisfação que os substitui.”

Mais tarde, a psicanálise encerra sua fala:

“Volte-se para si, para as profundezas, conheça antes a si mesmo; então compreenderá por que tem de ficar doente, e conseguirá talvez não ficar doente.”

***

* O “Eu” é o que era o “ego” na tradução consagrada. A tradução de Paulo César de Souza altera a nomenclatura.

***

Aos poucos, bem aos poucos, vou lendo as obras completas do Freud que a Companhia das Letras começou a editar no ano passado, com tradução de Paulo César de Souza. Ainda estou na metade do meu primeiro volume, e o 14º da coleção. O volume abre com um caso clínico memorável, O Homem dos Lobos. Aí vai pra Além do princípio do prazer, que não me animou tanto. E aí chegou a essa dificuldade da psicanálise.

Vou devagar com a leitura. Freud me faz ter sonhos incríveis, mas muito desgastantes. Só prossigo se posso me dar ao luxo de uma manhã mais perturbada. Sugestão, inconsciente, como saber?

(Aliás, posso apostar que hoje vai ser uma noite daquelas.)

domingo, 25 de março de 2012

Habitante Irreal, de Paulo Scott



Habitante Irreal estava na minha pilha fazia uns dois meses, coisa assim. Gosto do Scott. Bom sujeito, bom escritor. Via muita gente elogiando. Lia os comentários por alto, eu queria ler e não me contaminar. Via textos falando sobre a importância do livro, sobre o papel de tratar sobre "a causa indígena". Comecei a ter medo de achar chato. De ter uma tese política. De que Scott tivesse se perdido nesses anos todos de contato mais rarefeito.
Ainda bem que li.
Não é nada disso.
Um punhado de páginas passou voando, e eu já tava vidrado na índia Maína. Que personagem imenso. Uma noite, me peguei lendo, tomando notas e rabiscando. Saiu esse desenho aí em cima.

sexta-feira, 23 de março de 2012

O gosto do cloro

O gosto do cloro, de Bastien Vivès, é uma HQ sobre natação e amor.

Como uma piscina, é silenciosa e elegante.

***

Lendo, me lembrei da cena de Somewhere que já vi, sem exagero, dezenas de vezes: a da piscina do Chateau Marmont, com I'll try anything once como fundo. Não achei a cena, mas o vídeo abaixo tem alguns cortes e a música.




***

Dá pra ler o comecinho de O gosto do cloro, bem como a orelha do Paulo Scott, aqui:

Escritos em verbal de ave

"Queria que um passarinho 
escolhesse minha voz
para seus cantos."

Que livro bonito - e bonito de uma forma tão ampla - é Escritos em verbal de ave, de Manoel de Barros.

domingo, 18 de março de 2012

10 razões pra odiar Pina 3D

Win Wenders e Angela Merkel na estreia do filme, no Festival de Berlim


1. É cafona. Se fosse um diretor menos aclamado no circuito cult colocando cortininha e plateia pra emoldurar um filme velho, seria execrado. Mas é Win Wenders, que parece que pode tudo.

2. Pior ainda é a bailarina miniaturizada. Ou a Pina gigante e espectral em 3D no palco. Não sei qual das duas parece mais o holograma da Princesa Leia.

3. Óbvio que as coreografias da Pina Bausch são excelentes. Óbvio. Ficariam melhor sem Wenders.

4. Wenders quer ser cerebral. Aí faz um filme racional pra falar de emoção. Tédio sem fim.

5. Toca Leãozinho.

6. Os depoimentos dos bailarinos são o fim. Pina reduzida a um livro de auto-ajuda. 

7. Não me dou bem com os filmes do Win Wenders. Não rola. Me deixa.

8. Win Wenders não deveria desperdiçar seu tempo fazendo novos filmes. Deveria passar o tempo inteiro fotogrando.

9. Hugo foi o que Pina fica tentando ser: o primeiro filme em 3D excepcional.

10. Saber que o simples fato de eu não gostar vai redundar em horas de explicação do porquê de eu não ter gostado.

***

Duas coisas legais


1. Ver o túnel abandonado com imagens d'Osgêmeos em 3D. Mas isso, tou dizendo, já tinha aparecido na fotografia de Win Wenders.

2. O incauto que apresenta a Dança do Tamanduá Africano pra Pina - e em seguida ver que ela incorporou os passos numa coreografia.

Tochtli, a culpa por isso tudo que está aí e o que me impressionou no vídeo Kony 2012

Várias capas de Festa no Covil. Roubei do site do Villalobos


"Se jogam uma bomba atômica em você, os sabres não servem pra nada."

Gosto dessa frase que o Juan Pablo Villalobos escreve mais pro fim de seu Festa no Covil. De certa forma, esse romance curtinho que a Companhia das Letras lançou há umas semanas pode ser definido por ela. Porque o livro fala sobre (e é narrado por) esse menino, Tochtli, que vive isolado do mundo num cartel de narcotraficantes. Tão isolado que consegue contar quantas pessoas conhece (14). Filho de Yolcault, El Rey, não sabe exatamente por que vive isolado. Nem mesmo tem discernimento para entender o que se passa ali. É protegido. E se protege. Tipo o Mito da Caverna.

Tochtli é espertinho. Tem os sabres. Mas enfrenta uma bomba atômica, que é uma montanha de informações que ele desconhece. Ele nem sabe que vive no alto de um império de podridão etc. e tudo o mais que o narcotráfico é.

***

Os últimos dias foram corridos. Queria ter lido Festa no Covil em uma sentada, mas não deu. E olha que são menos de 100 páginas com uma fonte bastante razoável.

(Já volto pro Tochtli.)

Durante a semana, também não vi o Kony, aquele que todo mundo viu e que se tornou o vídeo que se viralizou mais rápido na história da internet. Só que o vídeo tem meia hora e, desculpa, é uma colagem de imagens com muitos clichês, não consegui me empolgar na primeira tentativa.

Assim:


Vi ontem.

Minha primeira reação foi "O Banksy fez isso". E não só pelo chapa Shepard Fairey, que aparece lá pelas tantas. Mas é que o autor parece alguém que entendeu o famoso "tudo isso que está aí". Banksystyle.

Aí fiquei pensando o que fez, até agora, 82 milhões de pessoas verem esse vídeo quase por inteiro (porque o Google só conta se você se aproxima do fim).

Ou melhor: o que motivou as primeiras mil ou dez mil pessoas a verem esse vídeo quase por inteiro. Porque, a partir de algum momento, a força do hype explica o fenômeno. Mas o que leva alguém que não é mais amigo do autor a dizer: "Ei, você TEM QUE ver esse vídeo" quando esse vídeo tem meia hora, é repetitivo, é em inglês, é uma colagem caseira de imagens e que, convenhamos, não é como a Susan Boyle, que você vê rapidinho, vê de novo, chama um amigo pra ver com você e, de repente, você mesmo, sozinho, percebe que foi responsável por uns dez views.

Raiva do ditador? Vontade de participar de um evento global? Desejo de ser um super-herói por um dia? Tentativa de mandar no governo? Culpa por não saber que existia um bandidão na África? Ou, somando tudo, uma forma de tentar lidar com a culpa que se sente pelo "tudo isso que está aí"?

(Na boa: adoro a ideia de prender Kony. Contudo, é a África. Um continente inteiro que é uma tragédia. Sudão. Nigéria. Líbia. Um continente inteiro que foi colonizado. E aí um rapaz americano. Enfim.)

***


Aí voltamos ao Tochtli. Que vive ao lado de um bandidão do narcotráfico mexicano. E, pelo que sabemos, o narcotráfico mexicano não é lá muito diferente de um Kony no quesito "atrocidades".

Tochtli não enxerga que seu mundo é estranho (pra nós) porque ele já nasceu imerso em todas as mentiras. Vive num mundo de fantasias, com samurais, hipopótamos anões, chapéus e palavras difíceis. Não pode sair (e aqui o poder é bem amplo). Não chega a ser muito diferente de quem tem um colar de diamantes e não sabe como a pedraria foi extraída de uma mina África.

Quer dizer: Tochtli não enxerga, mas há um subtexto que percorre o livro que indica que ele não quer ou não pode (porque não está pronto, porque tem limitações) enxergar.

Festa no Covil virou um sucesso editorial. Ganhou rapidamente edições em diversos países, e mais outros vão publicá-lo, o que não é exatamente comum para o primeiro romance de um autor latino-americano. Não é na mesma toada de Kony. Mas Festa no Covil também é um baita sucesso global.

Fiquei com a sensação de que Festa no Covil e Kony 2012 contam histórias muito parecidas sobre a tentativa de enxergar a origem do mal que está ao nosso redor.

***

Chegamos a um ponto em que tudo pode gerar culpa. Porque conseguimos enxergar a origem do mal.

A moça vai ficar noiva. Dez sudaneses morreram extraindo o diamante do anel da mina.

O cara resolve deixar de andar de carro pra pegar metrô. O sistema é hidroenergético, mas a eletricidade alagou hectares e hectares de mata pra ser gerada.

O rapaz compra um celular. Um chinês se matou.

O sujeito põe molho de tomate no cachorro-quente. Um agricultor do interior de São Paulo perdeu os braços porque precisou aplicar o agrotóxico sem proteção adequada.

Kony 2012 e Festa no Covil falam sobre essa consciência extrema que surgiu com a proliferação de abaixo-assinados, campanhas, notícias... A informação circula mais. Estamos todos conectados. Se tudo faz mal ao mundo, todos fazemos mal. Temos que lidar com o fato de que somos todos parte do bando de Yolcault, do exército de Kony ou do board da fábrica de celulares. É um inferno. Isso significa que não basta combater milicianos africanos com vídeos no Youtube. Para fugir do inferno, também temos que aceitar a nossa própria nocividade.