quinta-feira, 19 de abril de 2007

Desperate Housewives e a lógica das séries

Ontem à noite, com anos de atraso, acabamos de assistir à primeira temporada de Desperate Housewives, série que é volta e meia apontada como uma dessas que valoriza o roteiro e torna a TV norte-americana mais interessante que o cinema de Hollywood (visão que eu acho meio boba: há bons filmes e boas séries cercadas de muito lixo, como é típico de qualquer país do mundo).

Desperate Housewives não escapa à regra de criar uma trama que serve de metáfora para o que seus espectadores estão vivendo. Lost é sobre pessoas que escondem segredos -- e todo mundo esconde alguma coisa. Heroes é sobre um sujeito qualquer ficar especial -- e, na era do YouTube, os 15 minutos de fama dependem apenas de fazer o vídeo certo. (Já escrevi sobre isso num outro artigo, publicado no site Pop Balões.)

Desperate Housewives é sobre os medos que as mulheres de classe média sentem. Mas já falo sobre isso.

O segredo dessas séries parece ser a união entre pesquisa e roteiro na medida certa. A pesquisa chega a um insight devastador sobre o que se passa na cabeça da audiência. O roteiro transforma o insight em um programa que vale a pena ser visto, mas sem ignorar as motivações do público.

Já escrevi por aí minha hipótese de que Lost não perdeu audiência na terceira temporada porque ficou complexa ou porque não resolvia seus mistérios, e sim porque a série começou a mostrar gente sendo punida sem motivo algum. Quando um pecador sofre, o público sabe decodificar o motivo do sofrimento. O castigo divino é basilar na cultura mundial. Quando um herói sofre por uma causa, vira mártir. Quando um sujeito comum é torturado sem motivo algum, esse elo se rompe. E as pessoas começam a ver uma grande injustiça -- e ninguém se planeja para assistir a uma injustiça na quarta às 21h. Injustiças não são um programa imperdível.

Desperate Housewives é baseada em uma segmentação de público. São quatro mulheres de subúrbio, cada uma representando um perfil. Bree é a WASP anal retentiva. Susan Meyer é a bobinha. Lynette é a dona de casa. Gabrielle é a bonitona esperta. A primeira temporada é assim: Edie não está elencada entre as protagonistas, o que, pelo que entendi, muda a partir da segunda.

Edie, dentre as Donas de Casa Desesperadas, é a única que não é uma mulher de verdade, ou seja, não tem uma correspondência na vida real. Fora da TV, a mulher sexy seria a latina Gabrielle. Ser vadia nunca é um perfil, apenas um ponto de vista de um interlocutor. Ninguém se acha vadia. Edie é apenas um dos medos das mulheres -- e em especial da bobinha Susan.

Há outros medos. Bree, WASP e ainda por cima republicana, tem um filho gay, um marido sadomasoquista que é pego com prostitutas e perdeu o controle da situação. Susan tem uma filha mais esperta e madura que ela mesma. Quando encontra o homem perfeito, descobre que ele é assassino e traficante de drogas. Lynette abriu mão da carreira pelos filhos, tem um marido bobo e certinho, mas, por ficar feia, suja e desajeitada, não tem auto-confiança a ponto de acreditar que ele não está com outra. Gabrielle conseguiu subir na vida, mas perde tudo porque o marido fazia falcatruas em sua vida profissional.

Para Desperate Housewives, o grande medo de seu público é descobrir que as pessoas próximas têm uma vida paralela. É natural se a gente pensa nos terroristas de 11 de Setembro, que até o dia 10 eram vizinhos amáveis e bons colegas. O clima de desconfiança norte-americano ajuda, mas funciona até mesmo no Brasil. Não só porque as pessoas traem no escritório, mas porque seu vizinho pode ser um traficante de drogas ou seu colega de aula, de repente, está pegando a garota de quem você está a fim.

O mistério da morte de Mary Alice Young é potencialização máxima disso: um até pouco tempo pacato vizinho que de repente surge com um segredo realmente cabuloso.

Mesmo sem ver a segunda temporada, e sem nenhuma pista sobre ela, eu já diria que um dos fatores que fez com que ela fosse considerada mais fraca é a alteração do jogo de medos. Se, por um lado, a série precisa se renovar, por outro uma mexida substancial é complicada de ser feita quando se acertou o rumo.

2 comentários:

ematoma disse...

É muito engraçado como a gente se identifica mesmo com os personagens... Mas eu duvido que você saiba qual sou eu ;-)

Eduardo Nasi disse...

Não é engraçado, Marisa. A identificação é totalmente proposital.