Paulo Cesar de Araújo abriu os trabalhos da Prosa na Vila, encontro quinzenal (sempre às segundas) que a Livraria da Vila promove -- aliás, não na Livraria da Vila da Vila Madalena, e sim a nova, a da Lorena, nos Jardins. Foi um encontro concorrido. Sala pequena, para 70 pessoas, lotadas, incluindo aí um punhado de jornalistas e fotógrafos.
O foco, claro, foi o livro Roberto Carlos em Detalhes (que ainda está à venda na Saraiva e em uma que outra livraria por aí). Mas ele também comentou sobre o seu outro trabalho, Eu Não Sou Cachorro, Não. E os dois estão bastante interligados.
Ele comentou que a pesquisa sobre a música brega brasileira, por exemplo, está repercutindo bem. Como professor de História, fica feliz hoje de ver o Odair José citado em livros didáticos da área ao lado de Caetano e Gil como vítimas da ditadura. Mas que, no começo, não foi fácil não.
Lembrou, por exemplo, do medo que teve no noite de lançamento, em que chovia muito no Rio, onde mora. Falou que, historicamente, o Aguinaldo Timóteo, cuja vida é retratada ali, é um cara que nem quer saber de processo. Resolve tudo na porrada.
Aí lá estava ele, fim de noite, onze da noite, só um punhado de amigos na livraria, quando ouve um "Quem é Paulo Cesar de Araújo?". A voz era irreconhecível: Aguinaldo. Que não bateu, mas o parabenizou pelo trabalho, pela seriedade, por contar a história do brega com respeito e dignidade.
Eu Não Sou Cachorro, Não saiu antes de Roberto Carlos em Detalhes. E deu coragem pro Paulo Cesar.
O cara veio da Bahia pra São Paulo. Mais adiante, por conta de um amor, se mudou pro Rio. E foi lá que começou a pesquisar a música brasileira. Decidiu que ia contar a história da MPB -- no sentido mais amplo que a expressão permite. E escolheu o primeiro entrevistado: Tom Jobim. Pensou: se o Tom falar comigo, todo mundo vai falar.
A regra valeu para todo mundo: Caetano, Chico, os bregas, até o João Gilberto. Menos pro Roberto, com quem teve alguns encontros informais e várias entrevistas adiadas.
-- Na época, todo mundo atendia o telefone -- contou o Paulo César. -- Menos o Roberto. Nisso, o Roberto foi inovador. Ele tinha assessores antes de todo mundo.
Por 15 anos, ele ficou tentando falar com o Rei. A última tentativa foi em 2005.
-- Vou tentar o Guinness, é sério. Duvido que algum jornalista no mundo tenha insistido por mais tempo em falar com uma única pessoa.
Mas aí veio a biografia. Saiu, pela Planeta. E o Rei implicou. Implicou como não tinham implicado os bregas, um apresentado como gay, outro como drogado e por aí vai.
Aí veio o Marcelino Freire, que estava lá para ler o texto brilhante que escreveu sobre o caso:
-- Os caretas é que são perigosos.
E como são. Mas a gente ainda não sabia da metade.
O Paulo Cesar disse que o processo do Rei não eram um, e sim dois: um cível e outro criminal. A gente ficou sabendo do criminal. Mas que, em 28 de fevereiro, o juiz do cível, que corre no Rio, já tinha largado na rua uma liminar: a Planeta teria que recolher o livro, sob multa de R$ 50 mil por dia em que o livro estivesse à venda no Brasil.
Além disso, o Rei queria grana. "Alta indenização", define o autor. Tudo isso porque ele discordava de menos de 5% do conteúdo do livro. Ele também contou que o Rei teria tentado indiciar por calúnia, difamação, essas coisas, mas não achou brechas no livro. E então apelou pra invasão de privacidade (oh, o Rei comeu a Maysa) e uso de imagem (oh, tem a foto do Rei lá dentro).
O Juiz da Barra Funda, vulgo Tércio, foi quem coordenou a conciliação entre as partes aqui em São Paulo. Na Barra Funda, o que já diz muita coisa.
Outra coisa que ainda não tinha ficado claro pra mim: os advogados do Paulo Cesar eram os advogados da Planeta. E acho que todo mundo aqui concorda que os interesses do Paulo Cesar (deixar o livro nas prateleiras) e os da Planeta (deixar o livro na prateleira, desde quê) são semelhantes, mas não iguais.
Segundo Paulo Cesar, no meio da audiência, o Juiz da Barra Funda (vulgo Tércio) teria dito que era melhor eles se acertarem, porque ele já tinha ali, e até assinada estava, uma ordem judicial para fechar a Planeta.
E então começou o movimento jurídico da Prosa na Vila. Tinha advogadas ali, gente que se uniu na vida pra defender direitos autorais e afins, que estavam ali porque eram genuinamente interessadas no caso. E elas disseram que foi uma estupidez dos advogados da Planeta: por ser uma vara criminal, o juiz até podia mandar prender todo mundo ali, mas não tinha poder de mandar fechar uma editora. Ah, isso não tinha.
Aí tivemos outra intervenção jurídica. Uma senhora que trabalha pro governo. Falou do Ministério Público, dos juízes presos, da estranheza do caso. Por exemplo: o Juiz da Barra Funda, vulgo Tércio, teria tirado da pasta um CD e, alegando-se cantor e compositor (não é crime, é?), entregue ao Rei. E isso ao fim do encontro, livro recém-recolhido e coisital.
Mais advogados: uma senhora diz que essa coisa de o juiz ser cantor e compositor não é crime, mas que o lance de dar CD pro Rei durante o processo é suspeito. Assim como é esquisito que o processo tenha andado tão rapidamente. O lance de fechar a Planeta, disse outra, soa como coação. Tudo estranho, comentam os especialistas que estavam por lá. E dava pra ver um brilhinho no olho do Paulo Cesar.
Quanto à internet, ele não pareceu superanimado com a idéia do download ilegal da obra -- nem a venda de cópias a R$ 2 no Centrão. De fato, tudo que diz respeito ao Rei parece incomodá-lo mais do que declara. Mas, no fim das contas, aceita:
-- É a sociedade que se manifesta contra a barbárie. Não se destrói um livro fisicamente. O meu livro está vivo.
No final, no burburinho, começou uma mobilização. Há outras biografias correndo perigo. Uma é do Manuel Bandeira [e não Mário de Andrade, como eu tinha dito antes]. Foi impressa, milhares de exemplares, mas a editora optou por não distribuir, não logo.
O direito à privacidade, seja ela pública e unilateral, se sobrepõe à liberdade de expressão e à construção da História do Brasil.
Cansei de ouvir que o brasileiro é um povo sem memória. Se é mesmo, sei lá. Mas vai ser: em breve, por uma decisão judicial. Ou um acordo entre as partes, o que for mais cômodo.
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